19 julho 2017

Direito real de laje à luz da Lei nº 13.465/2017: nova lei, nova hermenêutica

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1. Introdução
1. Ainda nos meus primeiros raios de estudo de Direito, após um seminário acadêmico abordando as mudanças promovidas no Código de Processo Civil por várias leis, alcancei no corredor um dos maiores processualistas brasileiros que, nos bastidores, tinha sido um dos autores intelectuais dessas leis. O saudoso professor e ministro do STJ Athos Gusmão Carneiro, após dissolver minhas dúvidas, apoiou amigavelmente a sua mão no meu ombro e disse: “Nova Lei, Nova Hermenêutica”. Realmente, o Novo sempre surpreende. Os juristas tendem a infertilizar o Novo por meio de uma hermenêutica do passado. A sujeição ao Novo costuma demorar algum tempo.
2. O Direito Civil amanheceu no dia 12 de julho de 2017 com a primeira página do Diário Oficial da União trazendo-lhe impactantes novidades. Foi publicada a Lei nº 13.465/2017, que foi fruto da conversão da Medida Provisória nº 759/2016. Em suma, a nova Lei trata de regularizações fundiárias rural (arts. 2º ao 8º) e urbana (arts. 9º ao 82), abrangendo imóveis públicos e privados com inclusão dos da União (arts. 83 ao 97) e buscando a eficiência por regras secundárias (arts. 98 ao 109).
3. Trata-se de uma Lei que, ao enfrentar com ousadia o problema das ocupações irregulares de terras, chacoalha estruturas tradicionais do Direito Civil, denunciando que, entre as várias causas de proliferação da informalidade na ocupação fundiária, está também a progressiva decrepitude de alguns institutos de Direito das Coisas e das interpretações correlatas.
4. Tivemos a honra de participar dos trabalhos desenvolvidos no Congresso Nacional para a construção do texto da nova Lei e testemunhamos a participação relevantíssima de respeitadíssimos juristas, a exemplo dos professores Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior (USP), Dr. Roberto Paulino (UFPE) e Dr. Hércules Benício (IDP), Dr. Rodrigo Numeriano, além dos civilistas e registradores Dr. Flauzilino Araújo dos Santos e Dr. Sérgio Jacomino. Outros respeitados juristas deixam aqui de ser mencionados apenas em razão dos limites deste estudo. A Rede de Pesquisas de Direito Civil Contemporâneo teve participação especial nesse processo.
5. O texto final da nova Lei foi fruto de cadentes discussões travadas no Congresso Nacional e envolveu o acolhimento de sugestões de aprimoramento de redação de interesses das mais diferentes cores partidárias. Assim, apesar de o texto carregar alguns defeitos de técnica jurídica, ele, como um todo, representa a voz democrática dos brasileiros por um Direito Civil capaz de respaldar políticas públicas destinadas a garantir a ocupação formal dos imóveis.
6. O nosso objetivo aqui será o de apontar as principais novidades que despertarão debates intensos nos civilistas e que exigirão deles construir uma “nova hermenêutica” para tratar especialmente das instituições tradicionais de Direito das Coisas e de Direito Urbanístico.
7. De modo mais específico, trataremos apenas do Direito Real de Laje. Deixaremos para outra oportunidade o trato de outros assuntos relevantes ao Direito Civil, como as duas novas espécies de Condomínios (o de Lotes e o Urbano Simples), uma nova forma de aquisição originária da propriedade (Legitimação Fundiária), as alterações no Usucapião Extrajudicial e as novas regras sobre uma hipótese de extinção da propriedade imóvel, o abandono.
8. Abster-nos-emos também aqui de cuidar de outras novidades, como:
a) a criação de um sistema destinado a operacionalizar o registro eletrônico de imóveis (art. 76);
b) a instituição de um número único de matrículas imobiliárias no País (art. 101, que acresce o art. 235-A à Lei de Registros Publicos);
c) a pulverização do registro das linhas férreas para cada uma das serventias de registros de imóveis sobre o trecho do tapete de trilhos inserido na sua circunscrição territorial (art. 56, que modificou o art. 171 da Lei de Registros Publicos);
d) a racionalização das regras de execução extrajudicial da propriedade fiduciária sobre imóveis (arts. 66 e 67, que, entre outras normas, modificou a Lei nº 9.514/97);
e) as adaptações das regras de usucapião coletivo urbano (art. 79, que modifica o art. 10 do Estatuto da Cidade);
f) a regulamentação de um procedimento de regularização fundiária urbana que permita a perda da propriedade de um imóvel que esteja ocupado, de modo consolidado, por terceiros diante do silêncio do titular tabular (arts. 20, § 6º, e 31, § 6º);
g) a redução dos juros compensatórios de 12% ao ano para os desapropriados para o patamar remuneratório próprio dos Títulos da Dívida Agrária no caso de desapropriação por interesse social (art. , que insere o § 9º ao art.  da Lei nº 8.629/1993); e
h) a possibilidade de levantamento de valores depositados em juízo na desapropriação após concordância escrita do desapropriado sem renúncia ao direito de discutir diferenças de valores (art. 104, que acresceu o art. 34-A ao Decreto-Lei nº 3.365/1941).
9. Outra novidade que infelizmente deixaremos para outra oportunidade é o consórcio imobiliário, figura formidável que contribuirá para a utilização do reparcelamento como forma de reorganização do espaço urbano, conforme texto de um dos mais respeitados urbanistas brasileiros, o professor Victor Carvalho Pinto (Disponível em https://www12.senado.leg.br/publicacoes/estudos-legislativos/tipos-de-estudos/textos-para-discussao/td-130-reparcelamento-do-solo-urbano-um-modelo-consorciado-de-renovacao-urbana).
10. Como se vê, há muitas novidades, mas nos restringiremos ao Direito Real de Laje aqui.
2. Direito Real de Laje
2.1. Da gênese: subsídios para interpretações históricas
1. Após críticas levantadas pela doutrina, com destaque aos textos produzidos no âmbito da Rede de Direito Civil Contemporâneo, sob as penas dos professores Otávio Luiz Rodrigues Junior (http://www.conjur.com.br/2016-dez-26/retrospectiva-2016-ano-longo-impactos-direito-civil-contemporaneo) e Roberto Paulino (http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-nao-direito-real-direito-superficie), o texto do Direito Real de Laje inicialmente costurado pela Medida Provisória nº 759/2016 foi aprimorado.
2. No processo de elaboração, foram estimadas ideias de outras autoridades nesse tema, como o professor Frederico Henrique Viegas de Lima (UnB) – autor da obra “O Direito de Superfície como Instrumento de Planificação Urbana” – e o professor Rodrigo Reis Mazzei - com sua dissertação de mestrado “O Direito de Superfície no Ordenamento Jurídico Brasileiro”. Outros juristas colaboraram por diversos meios (e-mail, ligações telefônicas etc.).
3. Na redação do texto, foi também levado em conta a disciplina do instituto pelo Código Civil de Portugal, que, ao tratar do Direito Real de Superfície, disciplina o “Direito de construir sobre edifício alheio” no seu art. 1.526º, que merece transcrição:
Artigo 1526 (Direito de construir sobre edifício alheio)
O direito de construir sobre edifício alheio está sujeito às disposições deste título e às limitações impostas à constituição da propriedade horizontal; levantado o edifício, são aplicáveis as regras da propriedade horizontal, passando o construtor a ser condómino das partes referidas no artigo 1421.o”
4. Igualmente, no tratamento das áreas comuns, o legislador inspirou-se na disciplina que o Código Civil lusitano dispensa ao condomínio, com adaptações. Veja que o art. 1.510-C do CC, embora se particularize em alguns aspectos, guarda indisfarçável simpatia com a definição de partes comuns do prédio na forma desenhada pelo art. 1.421º do Codex português, que merece transcrição:
Artigo 1421.o
(Partes comuns do prédio)
1. São comuns as seguintes partes do edifício:

a) O solo, bem como os alicerces, colunas, pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a estrutura do prédio;

b) O telhado ou os terraços de cobertura, ainda que destinados ao uso de qualquer fracção;

c) As entradas, vestíbulos, escadas e corredores de uso ou passagem comum a dois ou mais condóminos;

d) As instalações gerais de água, electricidade, aquecimento, ar condicionado, gás, comunicações e semelhantes.

2. Presumem‐se ainda comuns:

a) Os pátios e jardins anexos ao edifício;

b) Os ascensores;

c) As dependências destinadas ao uso e habitação do porteiro;

d) As garagens e outros lugares de estacionamento;
e) Em geral, as coisas que não sejam afectadas ao uso exclusivo de um dos condóminos.

3 ‐ O título constitutivo pode afectar ao uso exclusivo de um condómino certas zonas das partes comuns.”
5. O Direito Real de Laje, em virtude da Medida Provisória 759/2016, convertida na Lei nº 13.465/2017, está agora previsto a partir do art. 1.510-A do Código Civil como uma nova espécie de Direito Real.
6. Vamos tratar de alguns pontos neste texto de modo objetivo.
2.2. Nomenclatura atécnica, mas popular
7. Em primeiro lugar, a nomenclatura “Laje” não foi a mais técnica, pois esse novo direito real retrata um direito real de superfície de graus sucessivos (segundo, terceiro etc.), que também poderia ser chamado de direito real de sobrelevação.
8. Todavia, por força da fama popular granjeada pela expressão, o Parlamento preferiu manter o nome atécnico. Perceba que, apesar de ser nomeado como direito real de laje, esse direito real também pode ser instituído para formalizar a titularidade de um direito real sobre “andares subterrâneos”, de modo que não é apenas a “laje” que serve de ponto de partida, mas também o solo.
9. Deveras, o direito real de laje não abrange apenas o espaço aéreo acima da laje (“andares ascendentes”), mas também o espaço abaixo do solo (“andares subterrâneos”). Isso demonstra a incoerência taxonômica do legislador: o Direito Real não é apenas de Laje, mas também de Subsolo.
10. Para adaptação terminológica, quando o Código Civil refere-se ao “titular da laje”, está implícito que se está a falar do titular da laje aérea e da laje subterrânea. Seja como for, a nomenclatura atécnica atende a um objetivo maior: aproximar o Direito do homem comum, do – nas palavras de Ronald Coase – “the man on the Clampham Bus”[3].
2.3. Definição e natureza jurídica: direito real sobre coisa própria (alargamento do conceito de propriedade)
11. Ao contrário do que insinua uma primeira impressão, o Direito Real de Laje não é um direito real sobre coisa alheia. É, sim, um novo Direito Real sobre coisa própria, ao lado do direito real de propriedade.
12. É verdade que uma visão topográfica do Código Civil não dá clareza acerca da natureza jurídica do Direito Real de Laje, pois este ocupa um título do Livro de Direito das Coisas (Título XI) em pé de igualdade com os títulos do Direito Real de Propriedade e dos direitos reais sobre coisa alheia. A visão panorâmica da organização do Código Civil deixa em aberto a efetiva natureza jurídica da figura.
13. A natureza jurídica é esclarecida pela leitura dos arts. 1.510-A e seguintes do Código Civil e do novo § 9º que foi acrescido ao art. 176 da Lei de Registros Publicos (conforme art. 56 da nova Lei).
14. Na forma como foi redigido o Código Civil nesse ponto, o Direito Real de Laje é uma espécie de Direito Real de Propriedade sobre um espaço tridimensional que se expande a partir da laje de uma construção-base em direção ascendente ou a partir do solo dessa construção em direção subterrânea. Esses espaço tridimensional formará um poliedro, geralmente um paralelepípedo ou um cubo. A figura geométrica dependerá da formatação da sua base de partida e também dos limites impostos no ato de instituição desse direito real e das regras urbanísticas. Teoricamente, esse espaço poderá corresponder a um poliedro em forma de pirâmide ou de cone, se isso for imposto no ato de instituição ou em regras urbanísticas. Esse espaço pode ser suspenso no ar quando o direito real for instituído sobre a laje do prédio existente no terreno ou pode ser subterrâneo quando o direito real for instituído no subsolo.
15. Enfim, o Direito de Laje é um Direito Real de Propriedade e faculta ao seu titular todos os poderes inerentes à propriedade (usar, gozar e dispor), conforme art. 1.510-A, § 3º, do Código Civil.
16. Ele terá, inclusive, uma matrícula própria no Registro de Imóveis, pois, conforme o princípio registral da unitariedade ou unicidade matricial, a cada imóvel deve corresponder apenas uma matrícula. Se o Direito Real de Laje fosse um direito real sobre coisa alheia, ele – por esse princípio registral – não poderia gerar uma matrícula própria.
17. Em verdade, o Direito de Laje representa um alargamento da noção tradicional de Direito Real de Propriedade, em semelhança ao elastecimento desse conceito que já foi feito, em tempos passados, pela figura de unidade privativa em condomínio edilício (ex.: os vulgos “apartamentos” que compõem edifícios). As unidades privativas de condomínio edilício também representam direitos reais de propriedade e possuem matrícula própria, de maneira que guardam semelhanças com o Direito Real de Laje. Apesar dessas similitudes, o Direito Real de Laje não é uma espécie de condomínio edilício, pois, além de não atribuir ao titular da laje qualquer fração ideal sobre o terreno (art. 1.510-A, § 4º, CC), possui regramento próprio.
18. O fato de o Direito Real de Laje aéreo (e não o subterrâneo, por conta da sua independência física, reconhecida pelo art. 1.510-E, I, CC) ser extinto no caso de ruína da construção-base sem reedificação em 5 anos não corrompe a sua natureza de um verdadeiro direito real de propriedade, pois essa dependência arquitetônica não é decisiva para a conceituação jurídica, que é fruto de uma ficção legal.
19. Como se vê, a nova figura desafia a doutrina tradicional de Direito das Coisas, pois o tratamento legal feito pelo Código Civil optou por considerar o Direito Real de Laje como uma espécie de direito real sobre coisa própria, e não como direito real sobre coisa alheia.
2.3. Proximidade com o direito real de superfície: aplicação subsidiária e perda da oportunidade de atualizar disciplina do direito real de superfície
20. O Direito Real de Laje não foi tratado, no Brasil, como uma espécie de Direito Real de Superfície. Todavia, a proximidade ontológica das figuras é inafastável, de maneira que, quando o jurista se deparar com alguma lacuna legal no tratamento do novo direito real, será plenamente viável servir-se, por analogia, de regras destinadas ao Direito Real de Superfície.
21. A propósito, temos que o legislador perdeu uma grande oportunidade: a de atualizar a disciplina do direito real de superfície, superando a injustificável divergência de tratamento legislativo entre o Código Civil e o Estatuto da Cidade. Entendemos que, nessa atualização, deverá ser aproximado o tratamento do direito de superfície ao que foi dado ao direito real de laje, de modo a, por exemplo, determinar que a formalização do direito real de superfície ocorra por meio da abertura de uma matrícula própria, especialmente quando ele for instituído por prazo indeterminado.
2.4. Lajes Sucessivas
22. O art. 1.510-A, § 6º, do Código Civil, em sua nova redação, admite direitos de lajes sucessivos, ou seja, laje de segundo, terceiro e de outros graus, à medida em que esse direito real for instituído sobre outro anterior. Daí decorre que, por meio das lajes sucessivas, poder-se-á ter várias unidades autônomas sobrepostas em linha ascendente (espaço aéreo) ou descendente (subsolo).
23. A laje de primeiro grau é a que, em primeiro lugar, repousa sobre ou sob a construção-base. A de segundo grau é a que segue após a laje de primeiro grau. E assim sucessivamente.
24. De qualquer forma, como a laje sucessiva pressupõe uma laje anterior (a de segundo grau presume, por exemplo, a laje de primeiro grau), é pressuposto inafastável que haja uma construção já realizada no caso de direitos reais de lajes no espaço aéreo. Em outras palavras, somente se poderá registrar um direito real de laje de segundo grau se, na matrícula da laje anterior, já tiver sido averbada alguma construção. Não se pode estabelecer direitos reais de lajes sucessivos no espaço aéreo sem a existência material e concreta de uma construção. A propósito, uma prova de que a existência concreta de construção é requisito para o direito real de laje no espaço aéreo é a previsão expressa de extinção da laje no caso de ruína do prédio sem posterior reedificação (art. 1.510-E, CC).
25. É diferente do que sucede com as lajes subterrâneas, pois, como o subsolo possui existência concreta, não há necessidade de se exigir uma prévia averbação de uma construção na laje anterior. Veja que a ruína da construção não extingue os direitos de lajes subterrâneas exatamente em razão da intangibilidade desse espaço (art. 1.510-E, I, CC).
2.5. Exigências urbanísticas
26. A exploração do direito real de laje depende da observância das normas urbanísticas, pois esse direito é destinado primordialmente à exploração da laje ou do subsolo com autonomia (art. 1.510-A, §§ 5º e 6º, do CC).
27. Daí decorre duas indagações: os cartórios de imóveis poderão registrar o ato de instituição do direito real de laje sem prévia autorização do município atestando a sua compatibilidade com as normas urbanísticas?
28. Ao nosso sentir, não há obstáculo algum ao registro do ato constitutivo do direito real de laje sem prévia autorização do município, pois a mera instituição de um direito real de laje não significa que haverá a realização de construção efetiva desse direito. Assim como o registro de um outro direito real qualquer (como o de usufruto ou de superfície) não reclama prévia autorização municipal, não há motivos para negar o acesso de um título constitutivo de um direito real de laje ao álbum imobiliário.
29. Com efeito, é viável que alguém se interesse em adquirir o direito real de laje apenas com o objetivo de especulação, para, no futuro, quando as normas urbanísticas se tornarem favoráveis, explorar a laje ou aliená-la. Não há motivos para impedir a constituição de um direito real.
30. Isso, todavia, não significa que, instituído o direito real de laje, o seu titular poderá livremente edificar um “andar” (aéreo ou subterrâneo), pois as regras locais de construção exigem autorização do município. Nem significa que ele poderá ocupar a laje, se houver vedação da legislação municipal. Isso significa que, se o titular fizer alguma construção sobre a área de seu direito real de laje, o cartório de registro de imóveis não poderá averbar esse fato na matrícula (ou seja, averbar a construção), salvo se for apresentado beneplácito municipal por meio do “habite-se” ou de outro documento que ateste a compatibilidade da obra com as regras urbanísticas.
31. Em resumo, as regras urbanísticas não impedem a constituição do direito real de laje, mas apenas a averbação de futuras construções feitas pelo seu titular. O que a Municipalidade pode restringir é o uso da laje ou a edificações sobre elas, mas não impedir a mera constituição de um direito real de laje.
2.6. Proximidade com condomínio: regras quanto ao direito de preferência e quanto à pluralidade de titulares
32. A nova norma incorporada ao Código Civil atentou para a semelhança do Direito Real de Laje às figuras dos condomínios no tocante à interligação arquitetônica do objeto desse direito com a construção-base e para o fato de o direito real de laje implicar a criação de um condomínio necessário sobre a sua face lindeira com a construção-base ou com as lajes sucessivas anteriores (art. 1.327CC).
33. O legislador lembrou que, conforme lição antiga dos romanos, o condomínio é a “mãe da discórdia”, pois a diversidade de projeto de vida de cada um dos condôminos sempre é um tonel cheio de pólvora cujo ansioso pavio está à espera de ser acendido por uma faísca de um pequeno desentendimento.
34. Daí decorre que a legislação deve estimular, no que for viável, o retorno ao perfil unitário de propriedade, com a dissolução do condomínio. Um exemplo disso é que, no caso de condomínio geral (e não no edilício), é assegurado o direito de preferência aos condôminos no caso de alienação de uma fração ideal (art. 504CC).
35. O direito real de laje tem muito a aprender com isso, pois o convívio entre o titulares das lajes e do titular da construção-base inexoravelmente está vulnerável a conflitos. Nesse contexto, para enfrentar esses litígios potenciais, além das regras de Direito de Vizinhança (arts. 1.277 e seguintes, CC), o legislador houve por bem estabelecer o direito de preferência no caso de alienação de um dos direitos reais de lajes no art. 1.510-D, de modo a estimular que as lajes sejam apropriadas apenas por uma pessoa. E, para viabilizar o exercício do direito de preferência em caso de expropriação judicial do bem, o art. 799 do CPC recebeu dois novos incisos exigindo a intimação dos titulares das unidades sobrepostas e da construção-base no caso de penhora.
36. A propósito, o mero fato de os direitos reais de lajes pertencerem a apenas uma pessoa não implica extinção desses direitos, pois se trata de unidades imobiliárias autônomas, à semelhança do que sucede no condomínio edilício.
37. Todavia, se o titular quiser unificar os imóveis valendo-se do procedimento de fusão de matrículas (art. 234 da Lei de Registros Publicos), não há obstáculo legal a tanto, caso em que haverá extinção dos direitos reais de laje. Essa unificação poderá restringir-se a unificar apenas alguns direitos reais de laje entre os vários que possam existir.
3. Conclusão
Os civilistas estão diante de uma figura nova, com uma formatação jurídico-técnica diversa daquelas com as quais estão habituados. A nova Lei reclama flexibilidade deles para entender os contornos do Direito Real de Laje nos moldes desenhados pelas vias legislativas brasileiras.
E é preciso lembrar que parte da culpa pela proliferação das informalidades pode ser atribuída ao esclerosamento de instituições e de interpretações que povoam o Direito das Coisas. Nova Lei, Nova Hermenêutica.
[1] O autor agradece à contribuição do amigo Consultor Legislativo Bruno Mattos e Silva, autor da renomada obra “Compra de Imóveis”, o qual dispensou-nos a gentileza de revisar o texto e emitir suas sempre abalizadas impressões.
[2] Consultor Legislativo do Senado Federal na área de Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário (único aprovado no concurso de 2012). Advogado. Professor de Direito Civil (IDP-Brasília). Mestre em Direito na UnB. Bacharel em Direito na UnB (1º lugar no vestibular de 2002). Currículo: http://www12.senado.gov.br/senado/institucional/conleg/perfis/carlos-eduardo-elias-de-oliveira. E-mail: carlosee@senado.leg.br .
[3] Essa expressão inglesa se reporta ao homem comum. Clapham é um bairro muito popular de Londres, de modo que a referência a um homem em um ônibus nesse local reporta-se a uma situação comum (COASE, Ronald Herry. A firma, o mercado e o direito. In: COASE, Ronald Herry. A firma, o mercado e o direito (coleção Paulo Bonavides). Tradução Heloisa Gonçalves Barbosa; revisão técnica, Alexandre Veronese, Lucia Helena Salgado e Antonio José Maristrello Porto; revisão final Otavio Luiz Rodrigues Junior; estudo introdutório Antonio Carlos Ferreira e Patrícia Cândido Alves Ferreira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2016-A, p. 4).

Por: Flávio Tartuce

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