25 agosto 2023

Algumas notas sobre a responsabilidade civil dos cartórios

 ALGUMAS NOTAS SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DOS CARTÓRIOS

Vale lembrar que a extensão da responsabilidade civil do Estado, em razão de dano causado pela atuação de tabeliães e oficiais de registro público foi analisada pelo Supremo Tribunal Federal.

O caso concreto diz respeito a erro na certidão de óbito quanto ao nome de uma mulher falecida, fato que impediu o viúvo de receber a pensão previdenciária por morte da esposa junto ao Instituto Nacional do Seguro Social. Diante disso, houve necessidade de ajuizamento de um pedido de retificação de registro o que retardou o benefício.

Conforme os autos, o viúvo ingressou com ação de indenização por danos materiais contra o Estado de Santa Catarina em decorrência do erro cometido pelo Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. A ação foi julgada procedente para acolher a pretensão do autor. Após recurso do estado, o Tribunal de Justiça local (TJ-SC) confirmou a sentença e atribuiu ao estado-membro a responsabilidade objetiva direta, e não subsidiária, por atos praticados por tabeliães, por força do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal.

Para aquela corte, o Estado, na condição de delegante dos serviços notariais, responde objetivamente pela reparação dos danos que os tabeliães e registradores vierem a causar a terceiros em razão do exercício de suas funções. Contra esse entendimento, a procuradoria estadual interpôs o RE 842846 para questionar o acórdão do TJ-SC.

Ora, do que se lê do artigo 236 da Constituição Federal, “os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.

A doutrina apresenta os traços principais dos serviços notariais e de registro: a) atividade própria do Poder Público, porém obrigatoriamente exercida em caráter privado e, não facultativamente, como se dá com a prestação de serviços públicos; b) a prestação é transpassada para os particulares mediante delegação e não através de concessão ou permissão , como se lê do caput do artigo 175 da Constituição como instrumentos contratuais de privatização do exercício dos serviços públicos; c) a teor do artigo 175 da Constituição o ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos.

Essa delegação deverá recair sobre pessoa física e não sobre pessoa jurídica, de modo que essa delegação não se fará por adjudicação em processo licitatório e não se traduz em cláusulas contratuais.

A fiscalização desse serviço cartorário será feita pelo Poder Judiciário, do que se lê da parte final do artigo 236, § 1º, da Constituição Federal.

Os serviços notariais são remunerados por taxa, tributo, como se lê no MC na ADIN 1.378, Relator Ministro Celso de Mello. Daí a conclusão: aquele que utiliza serviços notariais ou de registro não é consumidor (artigo 2º do CDC), mas contribuinte, que remunera o serviço mediante o pagamento de tributo.

Quanto à responsabilidade civil pelos atos praticados pelos notários e tabeliães, a doutrina e a jurisprudência se dividem.

O Supremo Tribunal Federal, nos julgamentos do RE 175. 739-SP; RTJ 169/364, RE 212. 724 – MG, RTJ 170/341, entendeu que a responsabilidade é do Estado, entendendo que “os cargos notariais são criados por lei, providos mediante concurso público, e os atos de seus agentes, sujeitos à fiscalização estatal, são dotados de fé pública, prerrogativa esta inerente a ideia de poder delegado pelo Estado”.

Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público. Tabeliães e registradores.

Os tabeliães e registradores oficiais exercem função munida de fé pública, que destina-se a conferir autenticidade, publicidade, segurança e eficácia às declarações de vontade.

Lembrou a ministra Nancy Andrighi que ao discorrer sobre o alcance da expressão fé pública, no direito notarial, Enrique Gimenez-Arnau explica que, "aquele que tem fé, tem uma convicção, uma crença, uma certeza, uma segurança, uma confiança" (Derecho Notarial. Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1976. p. 36). 10. Na mesma linha, Vitor Frederico Kümpel, em seu Tratado Notarial e Registral, leciona que "a autenticidade conferida pela fé pública garante segurança jurídica às relações e, por decorrência lógica, materializa a prevenção de litígios" (KÜMPEL, 2017, p. 137). (1ª ed. São Paulo: YK Editora, v. III, 2017. p. 137)

O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público e os atos de seus agentes estão sujeitos à fiscalização do Poder Judiciário, consoante expressa determinação constitucional (art. 236, CRFB/88). Por exercerem um feixe de competências estatais, os titulares de serventias extrajudiciais qualificam-se como agentes públicos

Outro entendimento é de que, à luz do artigo 22 da Lei 8.935/94, a obrigação de reparar o dano decorrente de atividade notarial é objetiva e pessoal do oficial (tabelião ou notário) e que a serventia ou cartório são partes passivas ilegítimas para responder, por serem desprovidos de personalidade jurídica.

A responsabilização objetiva depende de expressa previsão normativa e não admite interpretação extensiva ou ampliativa, posto regra excepcional, impassível de presunção.

Há ainda o entendimento de que a responsabilidade é do tabelião ou notário, mas subjetiva com base no artigo 38 da Lei nº 9.492/97.

Temos a lição de Hely Lopes Meirelles (Direito Administrativo brasileiro, 29ª edição, pág. 80 a 81): “Agentes delegados: são particulares que recebem a incumbência da execução de determinada atividade, obra ou serviço público e o realizam em nome próprio, por sua conta e risco, mas segundo as normas do Estado e sob permanente fiscalização do delegante. Esses agentes não são servidores públicos, nem honoríficos nem representantes do Estado; todavia, constituem uma categoria à parte de colaboradores do Poder Público. Nessa categoria encontram-se os concessionários e permissionários de obras e serviços públicos, os serventuários de ofícios ou cartórios não estatizados, os leiloeiros, os tradutores e intérpretes públicos, as demais pessoas que recebem delegação para a prática de alguma atividade estatal ou serviço de interesse coletivo”.

Disse ainda Hely Lopes Meirelles (obra citada, pág. 81): ‘Embora nossa legislação seja omissa a respeito, esses agentes, quando atuam no exercício da delegação ou a pretexto de exercê-la e lesam direitos alheios, devem responder civil e criminalmente sob as mesmas normas da Administração Pública de que são delegados, ou seja, com responsabilidade objetiva pelo dano ( CF, art. 37, § 6º), e por crime funcional, se for o caso ( CP, art. 327); pois não é justo e jurídico que a só transferência da execução de uma obra ou de serviço originalmente público a particular descaracterize sua intrínseca natureza estatal e libere o executor privado das responsabilidades que teria o Poder Público se o executasse diretamente”.

Para Sérgio Cavalieri Filho (Programa de Responsabilidade Civil, 9ª edição, pág. 261) não há justificativa alguma para responsabilizar o Estado diretamente em lugar do delegatário. Argumenta que se este aufere todas as vantagens econômicas da atividade delegada; se a exerce através dos prepostos que escolheu, sob o regime de direito privado e se tem a delegação de forma vitalícia (até a morte), nada mais justo e jurídico que a ele se atribua o ônus.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 545. 613/MG, Relator César Asfor Rocha, 4º Turma, entendeu que o tabelionato não detém personalidade jurídica, sendo a responsabilidade pessoal do titular da serventia. No caso de dano decorrente de má prestação de serviços notariais, somente o tabelião à época dos fatos e o Estado possuem legitimidade passiva. Esse julgamento se distancia de outro, no Superior Tribunal de Justiça, no REsp 476.532/RJ, quando se entendeu que o Cartório de Notas, conquanto não detentor de personalidade jurídica, equipara-se a uma dessas figuras denominadas pessoas formais, tais como a massa falida, o espólio, a herança jacente, a vacante e o condomínio.

Aliás, o artigo 22 da Lei 8.935/94 determina que “os notários e os oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiro, na prática de atos próprios de serventia, assegurando aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos”. Da mesma maneira, o artigo 21 da citada norma disciplina que “o gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular, inclusive no que concerne às despesas de investimento e pessoal”.

Em verdade, o cartório não possui capacidade processual, uma vez que todas as relações estão concentradas na pessoa do tabelião, que detém completa responsabilidade sobre os serviços, como disse Sérgio Cavalieri Filho (obra citada, pág. 262).

Esse o quadro objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento do RE 842.846, em regime de repercussão geral.

Ali se decidiu: :

Recurso extraordinário CONHECIDO e DESPROVIDO para reconhecer que o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. TESE : “ O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa”.

O Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa. Precedentes: RE 209.354 AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJe de 16/4/1999; RE 518.894 AgR, Rel. Min. Ayres Britto, Segunda Turma, DJe de 22/9/2011; RE 551.156 AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJe de 10/3/2009; AI 846.317 AgR, Relª. Minª. Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe de 28/11/13 e RE 788.009 AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Primeira Turma, julgado em 19/08/2014, DJe 13/10/2014.

Destaco, outrossim daquele histórico julgamento sobre o tema aqui enfocado:

Repercussão geral constitucional que assenta a tese objetiva de que: o Estado responde, objetivamente, pelos atos dos tabeliães e registradores oficiais que, no exercício de suas funções, causem dano a terceiros, assentado o dever de regresso contra o responsável, nos casos de dolo ou culpa, sob pena de improbidade administrativa.

Definida a responsabilidade dos cartórios pelos danos trazidos pelos seus serviços o STJ, em importante decisão, no REsp 2.043.325, por sua Terceira Turma, entendeu que o prazo prescricional para ajuizar pedido de indenização contra o tabelião, em razão dos danos materiais decorrentes de procuração nula lavrada por ele, começa a contar a partir do trânsito em julgado da sentença que reconheceu a nulidade.

De acordo com os autos, a empresa autora da ação indenizatória negociou a compra de um imóvel com uma pessoa que possuía procuração supostamente passada pela proprietária. Após a concretização do negócio, a antiga dona do imóvel ajuizou ação declaratória de nulidade e cancelamento de registro e uma ação de reintegração de posse. A primeira, julgada procedente, transitou em julgado em 2017.

Destaco o que informou o portal de notícias do STJ, em 24.8.23:

“A relatora, ministra Nancy Andrighi, afirmou que o ato notarial e de registro tem presunção legal de veracidade e, por isso, no caso em julgamento, o efetivo prejuízo só se configurou com o trânsito em julgado da sentença que reconheceu a nulidade documental e resultou na reintegração da antiga proprietária na posse do imóvel.

"A pretensão indenizatória da autora contra o tabelião nasceu somente quando infirmada, definitivamente, a autenticidade do ato notarial e de registro lavrado no cartório de que ele é titular", acrescentou.

A ministra apontou uma decisão semelhante, também da Terceira Turma, no AREsp 2.023.744, que aplicou a teoria da actio nata por entender que "a pretensão indenizatória da parte recorrida dependia do reconhecimento judicial do vício no registro".

"Não merece reparo o acórdão exarado pelo tribunal de origem, ao manter a decisão que afastou a alegada prescrição, fundado na teoria da actio nata", concluiu a relatora.”

Ali se disse que "a pretensão indenizatória da parte recorrida dependia do reconhecimento judicial do vício no registro" ( AgInt no AREsp n. 2.023.744/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, julgado em 6/6/2022, DJe de 8/6/2022). Cita-se, no mesmo sentido: AgInt no REsp 1.378.521/MS, Quarta Turma, julgado em 2/2/2017, DJe de 9/2/2017.

O tema é deveras amplo e vivenciado todos os dias nos negócios jurídicos que têm nos Cartórios importante instrumento de sua concretização.


Por Rogério Tadeu Romano

24 julho 2023

Fornecimento de medicamentos e o direito do paciente junto ao plano de saúde.

 O que o paciente pode exigir do seu plano de saúde quando o médico lhe indicar determinado medicamento.

É comum que, diante do diagnóstico de uma doença grave, o paciente busque junto ao plano de saúde a cobertura para o tratamento, todavia, é costumeiro ao solicitar a autorização ser surpreendido por uma negativa de cobertura para medicamento.

As negativas de cobertura de medicamentos mais frequentes são para:

  • · Quimioterapia, radioterapia e imunoterapia
  • · Tratamento oftálmico
  • · Tratamento de Hepatite C
  • · HIV
  • · Asma severa
  • · Diabetes
  • · Trombofilia
  • PSMA-177 Lutécio (octreotato tetraxetana), Nivolumabe (Opdivo®), Rituximabe (Mabthera®), Cloreto de Rádio 223 Ra (Xofigo®), Bendamustina (Ribomustin®), Olaparibe (Linparza®), Clexane, Pembrolizumabe (Keytruda®) e Everolimo (Afinitor®) são alguns dos medicamentos mais negados pelos planos de saúde.

A negativa pelo plano de saúde é correta?

Lei 9.656/1998 traz as regras que devem ser observadas pelas operadoras e os limites em relação à responsabilidade pelo custo de tratamentos e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) é responsável por regulamentar temas não abrangidos pela legislação.

De acordo com a lei, a obrigatoriedade de cobertura a medicamentos se dá em casos específicos:

  1. · durante a internação hospitalar do beneficiário;
  2. · na quimioterapia oncológica ambulatorial;
  3. · no caso de medicamentos antineoplásicos orais para uso domiciliar;
  4. · medicamentos para o controle de efeitos adversos;
  5. · medicamentos adjuvantes de uso domiciliar relacionados ao tratamento antineoplásico oral e/ou venoso.

Contudo, na citada lei há disposição sobre a obrigatoriedade de cobertura de tratamento pelo convênio de toda e qualquer doença listada na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, também chamada simplesmente de CID:

Art. 10. É instituído o plano-referência de assistência à saúde, com cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar, compreendendo partos e tratamentos, realizados exclusivamente no Brasil, com padrão de enfermaria, centro de terapia intensiva, ou similar, quando necessária a internação hospitalar, das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde, respeitadas as exigências mínimas estabelecidas no art. 12 desta Lei.

Ou seja, em sendo a doença coberta, o tratamento deve ser coberto pelo plano de saúde, até mesmo no que diz respeito ao fornecimento do medicamento prescrito pelo médico.

No mais, o fundamento mais comum utilizado pelos planos de saúde para negar o fornecimento de determinado medicamento é da ausência de previsão no rol da ANS.

Contudo, ainda que um determinando medicamento não conste no rol, se houver indicação médica justificando a necessidade do uso da medicação, o plano não pode negar a cobertura.

Até porque, o § 12 do art. 10 da Lei 9.656/1998, incluído pela Lei 14.454/2022, estabelece que o rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde contratados a partir de 1º de janeiro de 1999, não sendo, portanto, taxativo.

A alteração promovida pela Lei nº 14.454/2022, ao incluir os § 12 e § 13 ao art. 10 da Lei nº 9.656/98, estabeleceu critérios que permitem a cobertura de exames ou tratamentos de saúde que não estão incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, quais sejam:

  • comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou
  • recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); ou
  • exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.

Sendo que, na grande maioria dos casos, quando o médico prescreve determinado tratamento medicamentoso, via de regra há o preenchimento desses requisitos, quer seja pela comprovação da eficácia à luz das ciências da saúde ou quer seja pela recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional.

E assim sendo, mesmo que não previsto no rol da ANS, nasce assim o dever de cobertura pelo plano de saúde.

Reforça todo o dito o enunciado do Conselho Nacional de Justiça, no FONAJUS:

ENUNCIADO Nº 73 A ausência do nome do medicamento, procedimento ou tratamento no rol de procedimentos criado pela Resolução da Agência Nacional de Saúde Suplementar - ANS e suas atualizações, não implica em exclusão tácita da cobertura contratual.

Vale lembrar que as operadoras de planos de saúde funcionam como garantidoras do Estado, tendo o dever de zelar pela norma constitucional.

A garantia do direito à saúde, a toda evidência, é a garantia do próprio direito à vida, como assegura o artigo 5º da Constituição Federal.

Desse modo, se você recebeu indicação de medicamentos que devem ser custeados pelo plano de saúde, é possível abrir uma reclamação no site da ANS.

Em alguns casos, a intervenção do órgão é suficiente para que a operadora resolva a situação, mas em outros casos somente com a intervenção e acionamento do judiciário para sanar a abusividade.

E quando se trata de negativa de fornecimento ao argumento que se trata de uso domiciliar?

É comum as operadoras de saúde negarem o fornecimento da medicação para ao argumento que se trata de uso domiciliar, o que é excluído de sua obrigação consoante o disposto no artigo 10, inciso VI da Lei 9656/98.

Contudo, equivoca.

De início, como de igual modo há o disposto no artigo 10, inciso VI da Lei 9656/98, também há o disposto no artigo 35-F do mesmo diploma.

Assim, na ponderação das normas, prevalece a que mais beneficia o consumidor, a luz do disposto no Código de Defesa do Consumidor:

Art. 47. As cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.

No mais, é sedimentado que havendo cobertura para determinada enfermidade, não se mostra razoável a exclusão do seu tratamento, o que inclui a assistência farmacêutica necessária.

Por certo, a assistência a saúde que alude o art. 1o da Lei dos planos de saúde compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, o que nos leva ao entendimento que o fornecimento de medicamentos para tratar a doença constitui uma das forma de assegurar essa assistência.

Isso é o que disciplina o artigo 35-F da Lei dos planos de saúde:

Art. 35-F. A assistência a que alude o art. 1o desta Lei compreende todas as ações necessárias à prevenção da doença e à recuperação, manutenção e reabilitação da saúde, observados os termos desta Lei e do contrato firmado entre as partes.

A saúde suplementar cumpre propósitos traçados em regras legais e infralegais. Assim sendo, não se limita ao tratamento de enfermidades, mas também atua na relevante prevenção.

A exclusão da cobertura do produto farmacológico nacionalizado e indicado pelo médico assistente para o tratamento da enfermidade significaria negar a própria essência do tratamento, desvirtuando a finalidade do contrato de assistência à saúde.

Nesse sentido os tribunais brasileiros:

Diabetes Mellitus tipo 1. Prescrição médica acerca da necessidade tratamento com Bomba de insulina. Negativa de cobertura sob a alegação de que se trata de tratamento domiciliar e não previsto no rol de procedimentos da ANS. Recusa abusiva. Doença de cobertura obrigatória. Ausência de demonstração, pelo plano de saúde, acerca da existência de outro procedimento eficaz, efetivo e seguro já incorporado ao rol para o tratamento do paciente. Insumos (sensor e insulina) indispensáveis ao tratamento. Cobertura obrigatória. (...). (TJ-SP - AC: 10231962420208260602 Sorocaba, Relator: Pedro de Alcântara da Silva Leme Filho, Data de Julgamento: 19/07/2023, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 19/07/2023)

E mais:

NEGATIVA DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO DE USO DOMICILIAR. RECUSA DE COBERTURA INDEVIDA. MEDICAMENTO PRESCRITO PELO MÉDICO RESPONSÁVEL PELO TRATAMENTO. CLEXANE. FALHA NA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. DANO MORAL CONFIGURADO. QUANTUM ARBITRADO QUE NÃO COMPORTA MINORAÇÃO. SENTENÇA MANTIDA PELOS SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. (TJPR - 3ª Turma Recursal - 0001351-63.2019.8.16.0117 - Medianeira - Rel.: Fernanda Karam de Chueiri Sanches - J. 16.11.2020) (TJ-PR - RI: 00013516320198160117 PR 0001351-63.2019.8.16.0117 (Acórdão), Relator: Fernanda Karam de Chueiri Sanches, Data de Julgamento: 16/11/2020, 3ª Turma Recursal, Data de Publicação: 30/11/2020)

Portanto, a negativa, por si só, de tratar de medicamento de uso domiciliar, não retira o dever de cobertura pelo plano de saúde, sendo portanto, exigível que o paciente tenha a assistência a saúde assegurada.

O que deve constar na prescrição médica?

No relatório médico a ser enviado ao plano de saúde deve constar obrigatoriamente:

  1. · o objetivo na realização do tratamento
  2. · quadro clínico no paciente
  3. · histórico clínico do paciente com a descrição de todos tratamentos antes realizados
  4. · a imprescindibilidade na realização do tratamento
  5. · a urgência/emergência na realização
  6. · o risco de não realização
  7. · a inexistência de substituto terapêutico
  8. a comprovação de eficácia de uso segundo a literatura médica.
  9. orçamento

A orientação acima se dá baseado no enunciado de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça:

ENUNCIADO Nº 15 As prescrições médicas devem consignar o tratamento necessário ou o medicamento indicado, contendo a sua Denominação Comum Brasileira - DCB ou, na sua falta, a Denominação Comum Internacional - DCI, o seu princípio ativo, seguido, quando pertinente, do nome de referência da substância, posologia, modo de administração e período de tempo do tratamento e, em caso de prescrição diversa daquela expressamente informada por seu fabricante a justificativa técnica.

E mais:

ENUNCIADO Nº 67 As informações constantes do receituário médico, para propositura de ação judicial, devem ser claras e adequadas ao entendimento do paciente, em letra legível, discriminando a enfermidade pelo nome e não somente por seu código na Classificação Internacional de Doenças - CID, assim como a terapêutica e a denominação genérica do medicamento prescrito.

Qual o entendimento do judiciário?

Quando a negativa do plano de saúde é levada ao judiciário, o entendimento, ainda que não consolidado, se funda no dever do plano de saúde custear o tratamento medicamentoso.

Para o Superior Tribunal de Justiça (STJ), "não é cabível a negativa de tratamento indicado pelo profissional de saúde como necessário à saúde e à cura de doença efetivamente coberta pelo contrato de plano de saúde". (Processo: REsp 1.874.078).

O entendimento firmado pelo judiciário é no sentido de que, embora as operadoras de planos de saúde possam, com alguma liberdade, limitar a cobertura, a definição do tratamento a ser prestado cabe ao profissional de saúde, de modo que, se o mal está acobertado pelo contrato, não pode o plano de saúde limitar o procedimento terapêutico adequado.

Reforçando o exposto, considerando a crescente busca junto aos tribunais diante da negativa de cobertura de medicamentos pelo plano de saúde, algumas súmulas foram editadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP):

Súmula 95: “Havendo expressa indicação médica, não prevalece a negativa de cobertura do custeio ou fornecimento de medicamentos associados a tratamento quimioterápico.”
Súmula 96: “Havendo expressa indicação médica de exames associados a enfermidade coberta pelo contrato, não prevalece a negativa de cobertura do procedimento.”
Súmula 102: “Havendo expressa indicação médica, é abusiva a negativa de cobertura de custeio de tratamento sob o argumento de sua natureza experimental.”

Ainda, os tribunais brasileiros tem julgado os casos nesse sentido:

3. É abusiva a recusa da operadora do plano de saúde de custear o fornecimento de medicamento registrado pela ANVISA, e cujo tratamento consta nas indicações previstas na bula, máxime quando o próprio médico que assiste o paciente justifica sua imprescindibilidade para o tratamento. 4. O custeio de tratamento pelo plano de saúde pressupõe a existência de previsão de cobertura da patologia, e não da terapia recomendada para tratá-la, de modo que não cabe à operadora de plano de saúde substituir o médico a respeito de qual procedimento deve ser realizado no paciente. 4. Recurso de apelação conhecido e não provido. (TJ-DF 07428326620228070001 1725451, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 05/07/2023, 7ª Turma Cível, Data de Publicação: 18/07/2023)

O que fazer se o plano de saúde negar o pedido de uso do medicamento?

Em havendo indicação médica e tendo o plano de saúde negado o exame, o beneficiário deve solicitar por escrito as razões de negativa e poderá:

  • · em alguns casos, abrir uma reclamação junto a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que é responsável por regulamentar e fiscalizar as operadoras de saúde.
  • · buscar um advogado especialista e acionar o judiciário para sanar a abusividade.

Quais documentos necessários para ajuizar uma ação de fornecimento de medicamento?

· Relatório médico detalhado, com o histórico terapêutico, laudos médicos e exames que justificam a necessidade do exame;

· Documentos que comprovam a recusa do plano de saúde, como protocolos de ligações, troca de e-mails, cartas, negativa por escrito, entre outros;

· Carteirinha do plano de saúde, RG e CPF;

· Cópia do contrato do plano de saúde;

· Três últimos comprovantes de pagamento de mensalidades.

Conclusão

Diante do exposto, conclui-se que a exclusão da cobertura do produto farmacológico nacionalizado e indicado pelo médico assistente para o tratamento da enfermidade significaria negar a própria essência do tratamento, desvirtuando a finalidade do contrato de assistência à saúde.


06 julho 2023

STF suspende, em todo o território nacional, execuções trabalhistas de empresas de grupo econômico que não participaram da fase de conhecimento.

 


A possibilidade, ou não, de inclusão de empresa integrante de grupo econômico em execução trabalhista, sem que ela tenha participado do processo de conhecimento, gera uma profunda insegurança jurídica e é objeto de discussão e debates dentro do judiciário brasileiro. Tanto é assim, que está em julgamento na corte máxima deste país, processo que trata sobre tal discussão, o Tema nº 1.232 da Gestão por Temas de Repercussão Geral.

Tal divergência insurge nas execuções trabalhistas, pois conforme estabelece o art. 513, § 5º, do Código de Processo Civil, o cumprimento de sentença não deve ser promovido em face do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento. Vejamos transcrição do dispositivo:

"Art. 513. O cumprimento da sentença será feito segundo as regras deste Título, observando-se, no que couber e conforme a natureza da obrigação, o disposto no Livro II da Parte Especial deste Código.

§ 5º O cumprimento da sentença não poderá ser promovido em face do fiador, do coobrigado ou do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento."

Como se observa, o CPC é bem claro ao declarar que sequer o cumprimento de sentença é permitido em face de empresa que não tenha participado da fase de execução, quem dirá o impulso da marcha executória frente a quem não pôde se defender de forma adequada?

Ora, evidente que se uma empresa não participa da fase de conhecimento, e passa a ser incluída na lide apenas na fase executória, sob a alegação de tratar-se de empresa participante de mesmo grupo econômico da executada principal, há notória negligência processual quanto ao direito de defesa desta empresa, pois o contraditório não é observado de forma plena e a empresa passa a ser onerada de forma, digamos, equivocada, visto que no momento da sua inclusão na lideo processo já se encontra em fase avançada, pois já foi realizada a audiência de instrução, a produção de provas e a impugnação de documentos não é mais cabível e o valor da condenação já não pode mais discutido, pois já há o trânsito em julgado.

Ocorre que diversas pessoas jurídicas no país se encontram nesta situação e vêm sofrendo com os atos executórios, que implicam em gravames, penhoras, bloqueios em conta, indisponibilidade de bens e etc. Em virtude deste ultraje, e de uma série de decisões divergentes dentro do órgão máximo da justiça do trabalho brasileira, a discussão foi direcionada ao STF, onde aguarda julgamento, conforme já discorrido.

No entanto, diante de tanta insegurança jurídica a respeito da matéria, por cautela, frente a possibilidade de onerar - em muitos casos de forma irreparável - pessoa jurídica que não deveria compor o polo passivo da execução, bem como evitar a multiplicação de decisões divergentes nos Tribunais Regionais, foi necessária a suspensão de todas as execuções nacionais que versam sobre a possibilidade de uma execução seguir em face de empresas que não participaram da fase de conhecimento, até o julgamento definitivo do RE: 1387795 MG, conforme se observa a seguir no trecho da decisão do Ministro Dias Toffoli, com repercussão nacional:

"RECURSO EXTRAORDINÁRIO. STF. RE 1387795 MG . POSSIBILIDADE DE INCLUSÃO NO POLO PASSIVO DA LIDE, NA FASE DE EXECUÇÃO TRABALHISTA, DE EMPRESA INTEGRANTE DE GRUPO ECONÔMICO QUE NÃO PARTICIPOU DO PROCESSO DE CONHECIMENTO. Feito esse registro, anoto que as razões escritas trazidas ao processo pela requerente agitam relevantes fundamentos que chamam a atenção para a situação de dissenso jurisprudencial nas demandas trabalhistas múltiplas que veiculam matéria atinente ao tema, notadamente quanto à aplicação (ou não), na seara laboral, do art. 513, § 5º, do atual Código de Processo Civil - que prevê a impossibilidade de o cumprimento de sentença ser promovido em face do corresponsável que não tiver participado da fase de conhecimento. Esse cenário jurídico, em inúmeros casos de execução trabalhista, tem implicado constrição do patrimônio (não raras vezes de maneira vultosa) de empresa alheia ao processo de conhecimento que, a despeito de supostamente integrar grupo econômico, não tenha tido a oportunidade de ao menos se manifestar, previamente, acerca dos requisitos, específicos e precisos, que indicam compor (ou não) grupo econômico trabalhista (o que é proporcionado somente após a garantia do juízo, em embargos à execução). Esses argumentos, por si só, levam-me a concluir pela necessidade de se aplicar o disposto no art. 1.035, § 5º, do CPC, de modo a suspender o processamento de todas as execuções trabalhistas que tramitem no território nacional e versem sobre o assunto discutido nestes autos. Penso, dessa maneira, que se impede a multiplicação de decisões divergentes ao apreciar o mesmo assunto, consistindo, por assim dizer, em medida salutar à segurança jurídica. (STF - RE: 1387795 MG, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 25/05/2023, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 25/05/2023 PUBLIC 26/05/2023)."

Desta forma, necessário estar atento e requerer a aplicação da decisão nos processos que possuam empresas que foram incluídas na lide apenas na fase de execução, o que suspenderá a marcha executória até o julgamento definitivo do RE: 1387795 MG pelo STF.